Cláudia olhou pro guarda-roupas e nada a interessou. Estava absurdamente quente, e que ser humano não estaria irritado? Pois então, Cláudia estava puta. A última ligação a fizera quase jogar o telefone pela janela. Vestira, então, qualquer coisa e correra até a porta. A luminosidade lhe dava dor nos olhos.
Abriu a porta e apertou o botão do elevador. A gata olhou-a com desprezo, deu-lhe as costas e manejou seu rabo escovinha pro ar. Cláudia então fechou a porta. Colocou a alça da bolsa enorme no ombro e desceu.
15 minutos. 10 minutos. E ainda faltavam vinte de trânsito pela frente. Ele a olharia com desdém e reclamaria do atraso. Depois, a faria se sentir péssima por respirar. E porque o tempo sempre corria quando ela estava atrasada? O ar-condicionado estava quebrado, e o calor não estava ajudando nem um pouco. Nos outros carros as pessoas acomodaram-se com o engarrafamento, ligavam o som alto ou fumavam. Então a Cláudia mudou de idéia. Pegou o retorno, duas avenidas mais vazias, parou em uma banca de revista e pediu uma carteira de cigarros.
Cláudia não fazia idéia do que estava fazendo. Estava, na verdade, com os dedos formigando de excitação ao segurar o cigarro ainda não aceso por entre os dedos. E segurou-o, assim, olhou-se no espelho, colocou um batom na boca. O filtro branco manchado de vermelho prendeu sua atenção por alguns segundos, até que ela começou a rir. Riu, riu como uma idiota, riu e ainda estava rindo quando colocou a primeira marcha e saiu dali.
O ar da praia tinha gosto de sal. Cláudia estacionou, decidida. Correu sozinha, soltou os cabelos que só viviam presos e observou a paisagem ao redor. Era uma quarta-feira. Sentou-se na areia molhada, tirou os sapatos e acendeu um cigarro. A primeira tragada a fizera tossir. Fumou assim, tossindo, mal tragando, rindo, uns três ou quatro cigarros seguidos. E deitou-se no chão. Não se importava mais com o feijão no fogo, com o chefe gritando ou em pedir ao marido pra voltar.
Amanhã ela iria viajar.
Milhões de demônios estão se mexendo dentro da minha pele. A verdade é que eu não existo, eu não sou, eu só estou. Um minuto depois e tudo se perde; Sua imagem já foi embora, eu não sou mais a mesma coisa, eu não sou mais o que eu costumava ser a alguns segundos.
Você olha pro céu. Você fecha os olhos. Tudo mudou, tudo está fluindo para algum lugar que você queria saber onde é... e quando estiver prestes a saber, vai querer não ir.
Estrelas brilham, e o mundo parece abraçar você. É tudo tão grande. Eu sou tão minúscula.

Eu sou tão minúscula perto de você.
Não vai doer tanto assim não. Vai chegar a tocar os dedos em você, e o frio vai ser insuportável. Você vai sentir com toda a convicção de que é reversível se você fugir, mas vai saber que não é.
Convencer o instinto a seguir a razão vai ser difícil, mas você vai conseguir; e uma vez ultrapassada essa barreira, a dor vai sumir. Você vai aceitar. Morrer não é tão difícil. Não vai doer tanto assim...

devaneios

Nos sonhos eu sou muito melhor. Olhos enxergam pinturas a óleo no lugar de céus e nuvens. Os lugares pulsam, os corredores borbulham. Penso em quem pintou o céu. Alguém deve tê-lo pintado.
Cenas, ângulos, cores. Não sei porque pra mim e especialmente porque isso tudo importa tanto. Como cacos de vidros tão sujos e embaçados podem me fazer devanear e como eu sinto que nada disso, ao mesmo tempo, é importante?
Estou num jogo de xadrez. O tabuleiro, as peças... eu sou apenas um peão prestes a ser derrotado, no canto adversário, sonhando com a vitória. Olho pro chão e ele é gramado. Olho pro céu e existem copas de árvores, ao meu redor espelhos brilham opacos, sussurros ininteligíveis conversam rapidamente por dentro deles. Os espelhos tem raízes, eles respiram.
Mas aí eu acordo. Aquela luz amarela e florestal se apaga. O ventilador me deixou com a boca seca.
Uma vez me descreveram um lugar e eu não lembro de nada do que disseram. Na minha cabeça eu estava flutuando. Pensei em várias luas, em pilastras gregas feitas de vidro, eu num chão meio que transparente, em um senhor bondoso me esperando no alto das escadas. Tudo era meio azul. Não sei porque pensei em mais de uma lua, e não sei porque as pilastras não sustentavam teto algum.
O travesseiro não é tão macio, o escuro debaixo de meus olhos me incomoda. Vou conversando em minha cabeça, conversando, até faltar assunto.
E se...
Começa. Estou num banquete. Os pratos estão vazios. O rei me olha do outro extremo da mesa, ri satisfeito e pega o prato. Ergue-o e morde um pedaço de sua borda. Experimento o mesmo.
As bordas são doces. Experimento um talher, e ele é meio azedo.
Levanto-me e estou em uma biblioteca tão grande quanto eu não posso descrever. As estantes são altas, altas, três, não, quinze metros acima de mim. O teto é abobadado e enfeitado de estrelas. Dou uma gargalhada. Corro, os braços abertos, tocando tantos livros quanto eu consigo. Corro até ficar cansada, danço ballet por entre as páginas, até chegar a um livro em particular.
Toco sua coluna. A poeira sai dele. Abro sua capa, toco em sua primeira página. Aliso aquela folha de papel deformada pelo tempo, e logo ela se torna uma página nova. Olho-a continuamente, não paro de olhá-la, olho-a tanto que estou dentro dela.
É um aeroporto. A luz é neutra. Alguém me ajuda a carregar minhas malas. Penso que nunca estive num avião. Fico nervosa. A pessoa some e eu estou sozinha.
O aeroporto está todo vazio. É meio-dia. Eu sei que não há ninguém, não há ninguém no mundo mais, só eu ali, esperando o avião. Embarco, e lembro que essa palavra é estranha para um vôo.
Olho para baixo e só vejo água.
Eu não sei voar. Nem nadar.
Acordo com o som da chuva.
É tarde, é noite. Não vejo estrela alguma no céu. As silhuetas de prédios são mortas, mas prefiro pensar que eles estão apenas prendendo a respiração.
Prefiro pensar que eles nasceram do chão.

Chá de Nostalgia


Eu bebo chá de lembranças às cinco horas da tarde. Primeiro, recolho-as com os dedos trêmulos e as transformo em palavras; o cheiro de livros velhos, terra úmida, vento seco e empoeirado, suco de maracujá, folhas secas, tinta fresca e fim de tarde toma conta de toda a cozinha, enquanto eu mancho minhas mãos com todo o tipo de cor que minhas memórias carregam.

Encho o bule de sonhos. O dia morre. Ponho-os todos, sonhos, lembranças e dia a ferver, dentro de meus olhos fechados, perambulando agoniados dentro de minhas órbitas. Meu corpo joga-se na cama. Meus braços me abraçam, tocam meus pés gelados calçados com meias. Embebedo-me de nostalgia, choro lágrimas quentes e durmo fria na cama, esperando enquanto o dia não amanhece, sem desligar as luzes. Os fantasmas estão por todo o lugar. Eles dançam ao som da música que, triste, toca ao meu redor.

Maio.



Nasci em um dia de outono. Devia estar chovendo.
Todos os meus aniversários chovem.
Sou assim, só sei chover.
Lembro-me de um projeto de menina vestida de bailarina, com o nariz pro lado de fora do portão de madeira esperando os convidados chegarem ao seu aniversário. E talvez não viesse ninguém...
É a chuva, minha mãe dizia.
Gosto de maio. As folhas caem, as árvores ficam coloridas. O chão fica laranja, vermelho, amarelo. O vento gelado, a chuva que gela os ossos. Eu gosto... Gosto de maio. Do gosto meio doce de maio.
Solto os cabelos e o vento os acaricia. Beija meus olhos e alisa meu rosto. As poças frias molham meus pés enregelados dentro dos tênis velhos e sujos. Os castanhos parecem mais brilhantes.
Nunca aprendi a dançar. Nunca aprendi a esperar. Nunca soube ser só.
Aprendi a enfeitar cada minuto que passo nos dias de outono, caminhando pelas alamedas, beijando ternamente folhas secas com os olhos.

Se gotas de chuva, folhas de outono e contos de fadas pudessem ser uma pessoa, essa seria eu.

Não sei se são meus olhos que são enuviados, mas o mundo me parece meio desbotado... O verde da grama me parece tão pálido. O chão me parece tão sujo. A luz me parece tão fraca... e as árvores, tão mal vestidas. Às vezes eu queria aquarelar o mundo. Colori-lo nas mais bonitas cores. As flores seriam multicoloridas. O arco-íris seria fosforecente. Os sorrisos seriam brilhantes. As lágrimas seriam bonitas. Andar descalço não seria um problema. As pessoas seriam livres para brincar de chuva, ou para adormecer em um monte de folhas secas.
O céu não teria motivo algum para se vestir de cinzas.

Do medo e sua cura.


Tens que aprender: Os olhos podem pesar, não derramar. Soará falso como sempre, mesmo sendo mais verídico que o mundo que nos cerca. Os exageros que tanto estão entranhados em sua pele irritam, sejam eles quais forem. Exaltações irritam o âmago daqueles que se enterram em si mesmos. Os exageros são atribuídos aos loucos, e ninguém gosta de ser louco. A razão é o que eles mais enaltecem, mas também o que eles mais contrariam. Não é você quem decide o que ser, e sim a média geral do que eles conhecem sobre ti. Os julgamentos prévios estão à solta, e eles machucam.

“Mas como?”, eu pergunto. Como não chorar? Porque é digno esconder essas gotas díspares que desabam de minhas pálpebras, e porque, ainda, é pecado desentranhar-se? Porque é vergonha revelar-se? Porque a fraqueza é algo ruim?

Eu queria ser forte. Eu queria não derramar destes olhos uma gota sequer. Queria que essa doença que atende pelo nome de medo tivesse analgésico, que a dor que corrói meu âmago como ácido tivesse algum tipo de anestésico.

Eles estão todos olhando pra mim, e todos tem os olhares reprovadores. O que foi que eu fiz? Não lembro em momento algum de pedir pra viver. Então porque, afinal de contas, deveria eu continuar? Eu poderia até chocar violentamente meu crânio contra o teto, eu poderia até enfiar um projétil na minha testa, mas porque ainda estou aqui?

Poderiam sentir minha falta?? Mas neste mundo imenso, que falta faria uma pessoa? Se eu morrer, nascerá outro ser como eu, talvez melhor. Melhor poeta, melhor amante, melhor humano... Mais forte, sem defeitos, mais preparado, mais corajoso... Até porque poetas, oras! O mundo está cheio deles, afinal. A seleção natural é uma aposta, uma roleta russa, e agora é a hora em que chega a minha vez.

Que a bala entre em mim neste momento. E eu sabia. Algo no revólver que aponto à minha própria testa diz isso, e este algo me faz sorrir pela ânsia da minha tão esperada liberdade.

Par.

Me desconcentro por alguns momentos enquanto você me aconchega num abraço meio desajeitado, puxando e desconjuntando os lençóis à nossa volta.
Os olhos bêbedos perdem-se em pontos desfocados, sua boca ensaia possuir a minha.
Pernas enroladas, pulmões colados, corações frenéticos. Penso no quanto é bom abraçar você. No quanto seu cheiro de sabonete e cigarros faz bem ao inundar minha pele.
Tique-taques de relógio parecem uma sinfonia somente, o quão rápido as horas passam. Brisas abafadas alimentam nossos suspiros, breves e suaves, ao olhar um nos olhos do outro.
Ali os mundos, opiniões, crenças, amores, carinhos, fundem-se todos num só: uma poça brilhante colorida em avelã dando boas-vindas ao meu sorriso incontido.

O eu-lírico como carrasco de si.

Os olhos tontos corriam de um canto ao outro do meio-fio. A dor ainda fina da noite anterior queimava seus braços, onde os cortes eram escondidos por um casaco preto. O ponto de ônibus estava vazio. O sol a pino no meio do céu estupidamente azul cegaria qualquer um que ousasse encará-lo. O calor a sufocava.

Nenhum veículo passava por ali. O vento, seco, era o único que se locomovia. A poeira levantava e abaixava, levemente.

De repente, uns passos. Umas chinelas quebradas, pés se arrastando.

- Ô menina.

Ela levantou os olhos. A voz do homem era bruta. Por meio segundo encarou a faca que ele apontava para o seu nariz.

- Passa o celular. Bora, bora, bora, menina.

A vozinha tímida pareceu-lhe arranhar a garganta.

- Não tenho não, moço.

- A bolsa, então, molequinha!

- Só tô com meus livros, moço.

- Então me dá esse casaco, aí… Bora, bora, bora, garota! Leseira!

Ela, apreensiva, tirou o casaco. Ele foi embora correndo, colocando a lâmina disforme por dentro das calças.

As cicatrizes, cortes e feridas recentes estavam à mostra. os traços vermelhos, em carne viva , pareciam chorar à luz do sol. Quieta, olhou para para eles, enquanto o gosto do desespero e da vergonha diluíam-se em sua boca.

Entraria no ônibus daquele jeito? A olhariam feito louca. Neurótica. Abaixou-se e abraçou os joelhos. Desejou sumir, desejou se apagar. E ainda não entendia porque não havia se deixado morrer, uns segundos atrás. Talvez, bem no fundo, gostasse de ser seu próprio algoz.

como salvar-me dum afogamento



A inutilidade passa a consumir a minha garganta, meus pulmões. Pareço ser feita do ar que respiro. Sublimo fácil. Exalto fácil. Deprimo fácil. Sempre exposta sem proteções às radiações do cotidiano. É aí que a lágrima chora, a boca suplica. Você me acalma e me faz sorrir. Volta tudo ao normal, mais do que nunca, os olhos tranquilos conseguindo dormir.

para registrar.

dói.








dói muito.

O Nascer desta Escritora.

Começou a escrever no dia em que lhe falhara a voz. Quando sumiu-lhe o refúgio das palavras ditas.
De início, forçou. As notas saíram mudas, inertes. O rosto ficou rosado e sem ar.
Foi quando enfiou os dedos finos e gelados na garganta, e cavou-a com as unhas até jorrar de sua boca uma torrente esparsa de gotas rubras e doces.
Então,cuspiu-as no papel.