O eu-lírico como carrasco de si.

Os olhos tontos corriam de um canto ao outro do meio-fio. A dor ainda fina da noite anterior queimava seus braços, onde os cortes eram escondidos por um casaco preto. O ponto de ônibus estava vazio. O sol a pino no meio do céu estupidamente azul cegaria qualquer um que ousasse encará-lo. O calor a sufocava.

Nenhum veículo passava por ali. O vento, seco, era o único que se locomovia. A poeira levantava e abaixava, levemente.

De repente, uns passos. Umas chinelas quebradas, pés se arrastando.

- Ô menina.

Ela levantou os olhos. A voz do homem era bruta. Por meio segundo encarou a faca que ele apontava para o seu nariz.

- Passa o celular. Bora, bora, bora, menina.

A vozinha tímida pareceu-lhe arranhar a garganta.

- Não tenho não, moço.

- A bolsa, então, molequinha!

- Só tô com meus livros, moço.

- Então me dá esse casaco, aí… Bora, bora, bora, garota! Leseira!

Ela, apreensiva, tirou o casaco. Ele foi embora correndo, colocando a lâmina disforme por dentro das calças.

As cicatrizes, cortes e feridas recentes estavam à mostra. os traços vermelhos, em carne viva , pareciam chorar à luz do sol. Quieta, olhou para para eles, enquanto o gosto do desespero e da vergonha diluíam-se em sua boca.

Entraria no ônibus daquele jeito? A olhariam feito louca. Neurótica. Abaixou-se e abraçou os joelhos. Desejou sumir, desejou se apagar. E ainda não entendia porque não havia se deixado morrer, uns segundos atrás. Talvez, bem no fundo, gostasse de ser seu próprio algoz.