O eu-lírico como carrasco de si.

Os olhos tontos corriam de um canto ao outro do meio-fio. A dor ainda fina da noite anterior queimava seus braços, onde os cortes eram escondidos por um casaco preto. O ponto de ônibus estava vazio. O sol a pino no meio do céu estupidamente azul cegaria qualquer um que ousasse encará-lo. O calor a sufocava.

Nenhum veículo passava por ali. O vento, seco, era o único que se locomovia. A poeira levantava e abaixava, levemente.

De repente, uns passos. Umas chinelas quebradas, pés se arrastando.

- Ô menina.

Ela levantou os olhos. A voz do homem era bruta. Por meio segundo encarou a faca que ele apontava para o seu nariz.

- Passa o celular. Bora, bora, bora, menina.

A vozinha tímida pareceu-lhe arranhar a garganta.

- Não tenho não, moço.

- A bolsa, então, molequinha!

- Só tô com meus livros, moço.

- Então me dá esse casaco, aí… Bora, bora, bora, garota! Leseira!

Ela, apreensiva, tirou o casaco. Ele foi embora correndo, colocando a lâmina disforme por dentro das calças.

As cicatrizes, cortes e feridas recentes estavam à mostra. os traços vermelhos, em carne viva , pareciam chorar à luz do sol. Quieta, olhou para para eles, enquanto o gosto do desespero e da vergonha diluíam-se em sua boca.

Entraria no ônibus daquele jeito? A olhariam feito louca. Neurótica. Abaixou-se e abraçou os joelhos. Desejou sumir, desejou se apagar. E ainda não entendia porque não havia se deixado morrer, uns segundos atrás. Talvez, bem no fundo, gostasse de ser seu próprio algoz.

como salvar-me dum afogamento



A inutilidade passa a consumir a minha garganta, meus pulmões. Pareço ser feita do ar que respiro. Sublimo fácil. Exalto fácil. Deprimo fácil. Sempre exposta sem proteções às radiações do cotidiano. É aí que a lágrima chora, a boca suplica. Você me acalma e me faz sorrir. Volta tudo ao normal, mais do que nunca, os olhos tranquilos conseguindo dormir.

para registrar.

dói.








dói muito.

O Nascer desta Escritora.

Começou a escrever no dia em que lhe falhara a voz. Quando sumiu-lhe o refúgio das palavras ditas.
De início, forçou. As notas saíram mudas, inertes. O rosto ficou rosado e sem ar.
Foi quando enfiou os dedos finos e gelados na garganta, e cavou-a com as unhas até jorrar de sua boca uma torrente esparsa de gotas rubras e doces.
Então,cuspiu-as no papel.

Menina-Noite.

Ela continuava com os olhos pregados, decidida.Apesar dos cabelos fortemente tingidos num azul-índigo, os seus olhos eram o que mais chamava a atenção.Eram curiosos...sedentos, mas não secos de desejo. Eram suplicantes, inocentemente suplicantes, e me prendiam como ventosas. Ela soube me hipnotizar, e tive uma estranha sensação de que aquela atração a ela só acontecia comigo.
Ela era toda, inteira, um grito por atenção, ou talvez só tivesse gostos estranhos.Seu colorido me parecia um disfarce, pois nela eu só conseguia enxergar escalas de cinza. Cinza, ela era um vácuo que ansiava ser preenchido.E parecia que, apesar de todos os esforços, para o mundo, ela era preta-e-branca. Seus olhos cantavam uma cantiga tremeluzente...e estava tão alto que quase levei as mãos aos ouvidos.
Ninguém a notava,e se notava- surpreendi a mim mesmo por estar nesse grupo-não tinha a coragem de retribuir o olhar. Que criatura seria ela? Que olhos eram aqueles, que pareciam estar prestes a arrebentar-se? Eu não conseguiria olhar pra ela de novo, mas também não queria ser o próximo a ignorá-la. Não que ela me desse pena- afinal, era fascinante- mas...eu sentia medo. Medo como uma criança. E nesse momento, não sei porque, senti um ímpeto incontrolável de mergulhar naquela piscina de cabelos azuis. Tal ímpeto,que minha garganta queimava.
Me perguntei quantos garotos haviam feito isso antes, e minha respiração calou-se por alguns segundos. Foi quando lhe direcionei o olhar.
Ela respondeu-me de um modo cálido e suave,mas eu não vi mais nada focado,pois o mundo tremia à minha volta. Levantei-me do meu lugar. A passos decididos- eu até duvidei de mim mesmo- meu super-ego deixou de dominar-me as pernas. Eu nem parecia eu. Eu sumi.
Foi meu desejo que chegou à sua mesa e mansamente inclinou-se na direção da menina-noite,para plantar-lhe nos lábios um beijo.

De fábrica.

Senti-me enterrando aquilo tudo,grão de areia por grão de areia. Aquele buraco em mim - aquele que eu tenho no meio do peito,que comprime minhas costelas e coração - nunca pareceu tão adequado. Ele não era a ausência de um coração,e sim a repressão naquele gigante que eu tenho.
Nasci com defeito.
E nele,está a metáfora de esmagar-me. Vitimizar-me. Porque,no fim das contas,creio que eu nunca fui vítima. Aquela que aceita também deve ser culpada. Massacrada. Isolada.
Mas eu não o fui. Eu tive aquele afago,aquele carinho daquele que eu admirei,mas quem eu nunca esperei. E eu o apreciei. Tomei-o pra mim. E ele veio e fez-se meu. Eu podia guardá-lo numa caixinha e chamá-lo de meu.Meu,meu,meu.Podia cantar isso por horas,e horas,e horas,e horas. Nunca fechei a caixinha. Tinha medo que ele fechasse a minha também.
Mas eu dançava sozinha.
Ele sabia do meu buraco,meu vácuo. E lamentava-se por amar alguém que não tinha coração.
Foi quando ele decidiu ir embora. Uma dor estonteante afogou-me. Meu coração palpitava,amando. Ele existia. Ele o queria. Ele sangrava de tanta lágrima que chorava.
Ele não podia ir embora,ele não podia.
E ele ficou...Sorriu-me...Ele me amava.Ele me ama.
Ele me ama.

Meu coração cresceu a tal tamanho que hoje quando palpita,minhas costelas doem.Mas creio eu,que a dor pra mim é sentença.Eu nasci com defeito.É que meu coração não sabe bater direito...

Pedi pra que ele arrancasse de mim aquilo que palpitava em meu peito,porque dor era o que eu merecia. Os olhos dele pareciam prestes a se romper em desgosto,a boca encrispada numa linha fina e tremeluzente. Os braços cruzavam-se,negando meus afagos. Joguei-me ao chão,em prantos. Eu preferia socos e gritos. Eu preferia ser espancada. Sangrar. Queria que ele me enchesse de hematomas. Mas ele sabia. Foi muito pior.
As palavras dele me morderam,venenosas e magoadas. Parei,estática. Encarei-as. Os olhos dele não choravam,mas encaravam-me sem piscar,numa agonizante decepção.
Fechei os olhos,e as palavras materializaram-se em espinhos e cravaram-se em meu peito.
Eu quis arrancar meu coração com as mãos,tamanha a dor cortante que me presenteavam..Porém,quanto mais eu segurava-o com força,mais os espinhos afogavam-se.
Quanto mais ele sofria...Mais eu queria morrer.


Resolvi matar o branco hoje.
Assassinei os minutos a secos golpes de faca pra achar uma frase que se encaixasse aqui.
Ei-la:
" Apaixonei-me pelo vazio,gostei menos de mim do que do que não existe. "
e fim.